A criatividade textual de Nicola Yoon em contar o amor em “O sol também é uma estrela”

Chocolatte com café
5 min readMay 24, 2020

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Era mais um dia de trabalho como outro qualquer. Cheguei. Guardei as coisas na gaveta. Fiz login na máquina. Li os e-mails. Tarefas a cumprir. Textos para escrever. Até que o colega de trabalho rompe e o silêncio e fala: “Irla, vou te indicar um filme que ainda não vi, mas acho que você irá gostar. Vê só esse trailer”. O filme era “O sol também é uma estrela”. Pesquisei e descobri que era um livro escrito por uma imigrante jamaicana chamada — Nicola Yoon. O trailer do filme captou a minha atenção e coloquei na lista do #LeituraPreta2020. Afinal, sou daquelas: primeiro a gente lê o livro, depois assiste ao filme.

Arquivo Pessoal/Irla Costa

SINOPSE

Natasha e Daniel tem realidades distintas. Natasha está no centro de Nova Iorque para encontrar alguma solução para que a deportação da sua família não aconteça. Daniel está indo para sua entrevista como candidato ao curso de medicina em Yale. Natasha é pragmática, pé no chão, negra e jamaicana. Daniel é poeta, sonhador e filho de imigrantes sul-coreanos. Em 24h, tudo muda e as vidas de Natasha e Daniel se cruzam.

A ESCRITA DE NICOLA

Foto: Nicola Yoon por Sonya Sones para The Guardian

Pela sinopse já dá para perceber que temos um livro de romance adolescente e com as possibilidades de que tudo é possível para quem ama. É isso mesmo. Contudo, a organização do livro, a sagacidade em prender o leitor num único espaço temporal, poucos personagens e um ambiente caótico como a metrópole NYC faz desse livro algo que merece o registro dessa resenha.

Confesso que em muitos pontos a narrativa foi bem direta e sem muitos sobressaltos. É uma história fluída e sem muitas surpresas. Mas quando temos um conflito bem estabelecido e uma escrita consciente do que se vai contar…ah temos um outro presente como leitora: conhecer o autor através dos seus personagens.

O romance de Nicola Yoon não é epistolar, porém temos capítulos alternados entre 1º pessoa dos protagonistas que lembram cartas ou mesmo escritas em diários. Há também capítulos em 3ª pessoa quando o narrador/autor chama atenção para outros detalhes que acontecem para além da narrativa principal. Impossível não sair satisfeito em viver essa experiência de ser parte de uma história de amor fadada à separação.

As a writer, her superpower is a sincerity that manages to remain unsentimental; it turns happy endings into something a little more bittersweet. (Bim Adewunmi, colunista do The Guardian sobre Nicola Yoon)

O OLHAR DE NATASHA

Yara Shahidi no filme ‘O sol também é uma estrela’ (Divulgação/Warner)

Se a escrita criativa de Nicola é um presente. A personagem principal é a personificação de uma Julieta consciente do seu lugar na contemporaneidade. Natasha não tem medo de falar sobre ciências, do seu encanto pelo lugar que mora, das inseguranças e do amor (que desconhece) pelos que a cercam.

Natasha atualiza o arquétipo da mocinha indefesa já entregue na sinopse e prova que é possível falar sério, como também cometer loucuras e se entregar a um romance intenso com menos de 12h de duração. Com firmeza e consciência do seu lugar naquela relação, Natasha segue firme em mostrar seu lado mais cru e sem necessidade de uma defesa ou justificativa para seu pragmatismo.

Perto dessa personagem grandiosa, o sonhador Daniel se perde no seu mundinho de adolescente revoltado com os pais e a cultura que o cerca. Ser poeta e usar como argumento para rebeldia, perto de toda carga dramática que Natasha traz, chega a ser insuficiente num primeiro olhar. É nessa perspectiva que a autora, Nicola Yoon, criativamente nos ganha: ao inverter o clássico, temos a Julieta que não quer ser salva pelo Romeu. Natasha encontra em Daniel a fantasia do último romance naquele lugar que um dia chamou de lar. Ela precisa guardar lembranças positivas. Daniel é essa ruptura: para tanto concreto, é preciso circular algum para respirar. Com ele, ela respirava e pode se aventurar livremente nas últimas 12h antes do fatídico fim.

ATENÇÃO — SPOILER A PARTIR DAQUI

LOVE YOURSELF CONSCIENTE

Se eu já estava abobalhada com a escrita de Nicola Yoon, os capítulos finais foram para deixar o queixo cair de vez. Já estava na espera no final aberto e com a fanfic pronta para meu ‘próprio’ final feliz. A querida autora vem, faz um epílogo pelo olhar de uma QUARTA pessoa e nos dá o final feliz que tanto queremos: verossímil, sonhador e após lições da vida.

Nessa breve, intensa e coerente conclusão da narrativa, a autora mostra a importância do conhecer a si próprio, suas raízes e que tá tudo bem se sentir deslocado, pois depois entendemos porque passar por aquilo tudo. Como também, há hora para voltar, mudar, viajar…

Natasha conheceu a si mesma na Jamaica a partir do momento que os dias longe de Daniel passaram a ser mais distantes. Consciente que um romance a distância só é possível nos ‘filmes’. Ela seguiu em frente, aprendeu a seu amar por completo: sem vergonha ou reticências sobre as suas origens.

Gosto quando autores tratam de temas como identidade cultural e ‘desterritorialidade’. Contudo, fico com o pé atrás quando usam desse artifício para valorizar a nova vida longe da que pode ser chamado de nação de origem. Natasha falava da Jamaica pelo lado negativo, mesmo que em suas memórias fossem povoadas pelo belo. Natasha e seu pai escondiam o sotaque. Porém quando olhavam para dentro, a fala explodia, gritava!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recomendo a leitura pela qualidade textual e criativa da Nicola Yoon em envolver o leitor ao tecer uma narrativa que se desenrola em 12h. Sem medo de colocar os preconceitos e relações conflituosas de classe, etnia e gênero num cotidiano que podem acontecer no ônibus que a gente pega para ir ao trabalho. Esse tom trivial e comum, faz do livro uma ótima escolha de leitura em tempos de quarentena. Ainda que a realidade pode ser cruel, o romantismo e a esperança que Daniel transborda em Natasha (e em nós) trazem aquela pequena fé de um dia vai chegar a nossa vez de encontrar o universo paralelo em que somos felizes.

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Written by Chocolatte com café

Por aqui pretendo escrever sobre o que leio (livros e hqs), vejo (filmes, animações e kdramas) e ouço (muita música com um gosto eclético). Eu, Irla Costa.

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