J-drama mostra com sensibilidade única como a pandemia nos afetou
A pandemia ocasionada pela Covid-19 mudou a vida de todos em 2020. Contudo, nas produções asiáticas, bem como ocidentais, vimos raras representações desse singular momento do mundo atual. Como telespectadora de k-dramas e j-dramas, a ausência da contextualização da pandemia nas produções foi algo que chamou a minha atenção. Tivemos pausas para organizar a produção dentro da nova realidade e seus protocolos de segurança em prevenção ao contágio, mas a inclusão dela na trama não aconteceu.
Foi exatamente esse aspecto que despertou o meu imediato interesse quando vi um trecho de “Nigeru wa Haji da ga Yaku ni Tatsu — Ganbare Jinrui! Shinshun Special!!” circulando na timeline. Logo fui atrás do título e veio a grata surpresa: se tratava de um especial de um j-drama de 2016, adaptação de mangá do mesmo nome, que gostei muito quando assisti há alguns anos.“Nigeru”, por ser um título enorme, vamos nos referir pela primeira palavra ao longo do texto, é um drama de casamento por contrato que conta a história de Mikuri e Hiramasa em sua jornada de autoconhecimento e relacionamento amoroso.
No jdrama regular de 2016, Mikuri conhece Hiramasa e trabalha na casa dele como empregada doméstica. Por entraves da vida, ela precisa morar no trabalho e para isso Hiramasa propõe o casamento por contrato. Seguindo o roteiro comum, eles se apaixonam e o casamento passa a ser real. Se quiser uma resenha sobre o drama, recomendo dar um pulo no Shoujo Café. Aqui, vamos nos ater ao especial que tem 2h de duração (o que daria, mais ou menos, 4 episódios de j-drama) e traz debates interessantes sobre gênero, pandemia e solidariedade.
GÊNERO X TRABALHO
O drama inicia em junho de 2019 com Mikuri divagando com as colegas de trabalho durante o almoço sobre filhos, a política de natalidade japonesa e como a gestação incide no mercado de trabalho. Algo muito interessante e merecedor de destaque: o Hiramasa é apresentado no drama fazendo comida, enquanto Mikuri lê uma revista e narra sobre a relação de parceria que há entre eles. O que é um contraponto à conversa de Mikuri e as amigas no trabalho.
A maneira como Mikuri e Hiramasa conversam sobre as questões de gênero como a alteração do sobrenome com a alteração do registro matrimonial — de relação estável para casamento, as tarefas domésticas e o ato de ‘se tornar pais’.
Ao contrário do que seria num drama comum, Hiramasa se esforça para compreender o ser pai e mostra-se compreensivo a toda transformação que Mikuri está vivendo com a gravidez. A divisão de tarefas domésticas precisa ser repensada, pois os enjoos e a indisposição deixam Mikuri sem forças e Hiramasa assume todo o trabalho doméstico, ao mesmo tempo que está digerindo a ideia de ser pais e a mudança de vida. Para alguém tão travado e apegado à rotina, a gravidez é um choque e tanto.
Enquanto em casa Mikuri está lidando com a personalidade ainda mais travada do marido, no trabalho, ela está sofrendo com a negociação para a licença maternidade, a ‘falação’ dos colegas sobre a sobrecarga de tarefas e a injusta redução salarial. UFA! No outro lado do casal, Hiramasa passa a chamar atenção dos colegas de trabalho pelo seu raciocínio prático e solidário para com todos.
PANDEMIA COMO RECURSO CRIATIVO
A pequena Akou nasce em 2020 e chega num momento não muito legal: a Covid-19 se alastrando na Ásia e mudando a vida de todos. Mikuri, assim como muitas de nós, entra em pânico sobre o novo coronavírus e seus efeitos nocivos que podem afetar o bebê. Muito além do cuidado excessivo com a higiene, Nigeru mostra o impacto no ambiente de trabalho e nas famílias.
O roteiro inclui a pandemia como mais um desafio para nosso casal. Aprender a lidar com a distância, o medo e a nova vida com a filhinha. Proposto por Hiramasa, Mukuri sai de Tóquio e vai passar uma temporada na casa dos pais que moram no interior. Para ele, suas idas e vindas do trabalho colocariam a vida da esposa e da filha em risco de contágio. Contudo, ao pensar na segurança das mulheres da sua vida, Hiramasa perde momentos preciosos do crescimento da filha.
As cenas de solidão e as conversas via e-mails, videochamadas e chats de mensagens instantâneas são desoladoras. A crise do comércio, o esforço dos gestores para manterem a equipe empregada e o excesso de trabalho também são representados. Mesmo sendo um tema pesado, em Nigeru ela funcionou como um arco perfeito para demonstrar a redenção e os aprendizados dos personagens da trama.
CONSIDERAÇÕES
Nigeru é sensível, divertido e progressista na medida certa. Mostra que é possível a partir de um clichê — contrato de casamento — trazer à baila debates interessantes sem beirar a panfletagem gratuita. Sem grandes reviravoltas ou acontecimentos trágicos, até porque a pandemia já suficientemente desoladora, Nigeru Especial é um importante e necessário registro na teledramaturgia asiática desse singular momento da história recente mundial.
Os personagens discutem as diferenças e críticas com segurança. Além de serem sustentados, na trama, a partir de situações verossímeis de sua sociedade. Não há uma vontade de ‘parecer’ Ocidental ou incorporar um debate de forma rasa e solta no contexto da trama.
A vontade de sairmos melhores da pandemia e mais solidários uns com os outros é a grande mensagem do j-drama. Algo que realmente espero e torço para que aconteça.
p.s: Essa resenha faz parte da ‘Meta Doramática 2021’ do MDUGS Blog.
