JEREMIAS PELE & ALMA

Chocolatte com café
4 min readFeb 6, 2021

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ALMA (2020) || PELE (2018)

Os debates sobre a questão racial sempre são acalorados. Imagina contextualizar um tema tão delicado no contexto de um personagem infantil? Jefferson Costa e Rafael Calça conseguiram essa proeza. As graphic novels Jeremias ‘Pele’ e ‘Alma’ nos apresentam o racismo na sua forma mais crua e cotidiana através da vida do Jerê.

PELE

Qual criança negra nunca ficou sem graça ao ser escalada para representar um papel pequeno na peça da escola? Ou quando nas brincadeiras diziam “Você não pode ser tal personagem. Nem é da mesma cor”. Uma memória dolorosa compartilhada por muitos de nós. Jeremias é um menino lindo, inteligente, gentil e alegre. Acredita que pode ser o que ele quiser. Porém, essa fé foi abalada pela crueldade social. Na escola, ele não pode ser astronauta como em seus sonhos. Na vida em família, ele aprendeu que cada um tem o seu valor e ninguém é melhor que o outro.

Ainda que a narrativa seja ágil e nos deixa aquele gostinho de quero mais, ela é precisa. Somos arrebatados pela vida de Jeremias, sua família e escola. É sobre a escola que, pra mim, reside o grande destaque da HQ. A escola é o microcosmo que temos nossa amostra ‘grátis’ das desventuras que sofremos no mundo real.

Situações que abordam racismo estrutural, sexismo e bullying perpassam no cotidiano escolar de Jeremias. Feridas que causam cicatrizes. Contudo, quando se tem amigos, e uma família que se ama e o respeito pelo outro, uma outra história pode ser escrita.

ALMA

Quando falamos em racismo, logo lembramos da pele. Algo tão tangível. Visível. Nessa nova edição de Jeremias, o roteiro nos leva a explorar nossas raízes. Com sensibilidade e fantasia, somos imersos no universo particular do Jerê e seus amigos sobre origem e orgulho.

Nome e sobrenome são importantes itens que identificam e sinalizam uma ideia de pertencimento. Localidade. Mais que um vocativo, o nome pode fornecer informações sobre o nosso passado familiar e até mesmo conduzir um processo de orgulho pelo passado ancestral.

Para o povo negro, falar do passado é reviver feridas que não foram plenamente cicatrizadas. Estamos falando de milhares de pessoas que foram sequestradas do seu lar, apagadas do mundo, taxadas de indigentes sem nomes, quando tinham nome-família-lar. Como um museu formado por espólios de guerra, em que o acervo são fotografias das gerações da família do Franjinha, Jerê tem um vislumbre da arrogância privilegiada em poder recontar a própria história sem apagamentos ou incertezas.

Origem, família e moradia são carências que marcam grande parte da população que se identifica e é identificada como negra no Brasil. Somos Santos e Silva, filhos de mãe solteira, filhos de mãe e pai trabalhadores em tempo integral, moradores de aluguel, crias da periferia, dentre outras realidades comuns.

Com sutileza e sensibilidade únicas, o roteiro nos envolve numa trama em que olhar para dentro é o começo.

CARNE

Rafael Calça e Jefferson Costa foram ‘faca na carne’ com Jeremias. Mais que fazer uma reparação a uma ‘injustiça histórica’, como Maurício de Sousa escreve no prefácio, os autores vão direto na carne. Impossível não sair sensibilizada após a leitura. É daquelas histórias que saem do papel e passam a morar em nós. Cada quadro, cor, balão, fala, expressão…TUDO fica registrado na memória leitora.

A edição é belíssima. Pele & Alma dialogam com o mundo contemporâneo. Mesmo com a minúscula presença dos suportes tecnológicos (redes sociais, smartphones, tvs, streamings) tão comuns do cotidiano, o espaço em que se passa a narrativa é verossímil. Até mesmo quando o elemento fantástico se integra à trama.

Emicida e Elisa Lucinda ficaram a cargo dos textos da quarta capa de Pele e Alma, respectivamente. Compartilham com o leitor suas impressões sobre a obra e despertam aquele desejo de logo desvendar todos os quadros. Inclusive, Elisa é definitiva ao escrever o seguinte:

“Com um texto afiado, responsável, sincero e poético e uma arte ágil e leve, Rafael Calça e Jefferson Costa abrem uma clareira de luz e de força para o enredo da vida brasileira”.

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Written by Chocolatte com café

Por aqui pretendo escrever sobre o que leio (livros e hqs), vejo (filmes, animações e kdramas) e ouço (muita música com um gosto eclético). Eu, Irla Costa.

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