O arado torto que há em nós

Chocolatte com café
3 min readSep 26, 2021

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Se você está atento às listas dos livros mais vendidos e destaques na literatura nacional, é impossível ter passado batido pelo livro ‘Torto Arado’, do autor baiano Itamar Vieira Junior. No início do ano, o livro dominou a tv aberta e o foi reconhecido como o ‘novo’ clássico da literatura brasileira. Tudo isso não passa de adjetivos, merecidíssimos, ao livro que nos conquista aos poucos.

Não vou, aqui, escrever uma review para falar sobre a narrativa, ambiente, personagens e a qualidade lírica textual de Vieira Junior, mas de como ‘Torto Arado’ mexe com a gente. O silêncio de Belonísia e a vontade de Bibiana se entrelaçam. Juntas elas tecem duas características comuns à mulher negra: quando a vida não silencia violentamente, o acesso ao conhecimento a convertem numa exceção que assusta.

“Queria ensinar para que se desenvolvessem sozinhas no mundo, para que ajudassem aos que precisassem pela liberdade que lhes foi negada desde os ancestrais”.

SILÊNCIO

Belonísia perdeu a voz numa brincadeira de criança devido ao descuido de adultos ao deixar uma faca escondida, e ao mesmo tempo criou uma narrativa curiosíssima sobre o objeto, para deleite do espírito desbravador de crianças arteiras. O destino não poderia ser outro: enquanto brincava com a irmã, Belonísia teve a língua cortada.

O silêncio construiu a sua personalidade ressabiada e firme diante das adversidades do destino. Desenvolveu uma concentração única, percepção precisa e uma perspicácia para lidar com o machismo dos brutos.

“Se havia coisa que aprendi era que não deveria aceitar a proteção de ninguém. Se eu mesma não o fizesse, ninguém mais poderia.”

VONTADE

Bibiana leva em seu coração o arrependimento das ações ‘maliciosas’ de adolescente que se desenvolve como força motora para mudar o seu destino. Ainda menor de idade, ficou grávida do primo e mudou-se com ele para outro lugar. Juntos, o casal estudou, guardou dinheiro e voltou com a mente transformada para o povoado que deixaram para trás.

No povoado, incutiram o pensamento de organização de classe no povo quilombola e a educação transformadora — agora professora.

“Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”

ENCANTOS DA AUTODESCOBERTA

Dividido em três partes (Fio de corte, Torto Arado e Rio de Sangue), a teia narrativa do livro tem a terra como fio condutor que une os conflitos e as transformações das irmãs Belonísia e Bibiana. Afinal, é da terra que tiramos o nosso sustento, batalhamos por ela para ter um lugar para chamar de nosso, construímos nossas relações e alicerçamos nossa raíz — também é para onde voltamos no fim da jornada.

“Gente que perseguia fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos prolongados de trabalho fatigante, quebrando rochas, levando cascalho, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte.”

Na luta pela terra, Belonísia enfrentou o machismo das terras sem lei e sem ao menos levantar a voz, conseguiu arar a terra e defender-se sem necessidade de quem o fizesse por ela. Afinal, estamos diante de uma mulher que, nas terras de difícil fertilidade, conseguiu tirar seu próprio sustento e defendeu a si (como também a sua amiga) da maldade gratuita do macho perdido em seu poder facilmente abalado.

Em sua busca pela terra, Bibiana buscou conhecimento intelectual, formou-se professora e entendeu de forma clara que ao longo do tempo o suor do seu povo não era reconhecido, muito menos legalizado. Quando se tem uma educação transformadora, ela modifica seu entorno e afeta os altos poderes. Poderes esses que se abalam diante da força de um povo consciente do seu papel e seus direitos.

O torto arado das irmãs provocou em mim, enquanto leitora, a pergunta ‘qual o espaço que ocupo?’. Na luta e busca pela terra, a obra alinhava em nossa mente sobre as ausências de privilégios do povo preto que reverberam em pequenas violências diárias. Do silêncio da mulher negra, pois quando grita é na defensiva ou violenta. Do estudo que expõe suas restrições e é usado como ignição da transformação, isso quando o espaço lhe é dado.

“Com a força de suas mãos dilaceradas você apenas abria um caminho.”

Para conhecer a narrativa e a sinopse do livro, recomendo a resenha do portal literafro da faculdade de Letras da UFMG -> http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1465-itamar-vieira-junior-torto-arado

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Written by Chocolatte com café

Por aqui pretendo escrever sobre o que leio (livros e hqs), vejo (filmes, animações e kdramas) e ouço (muita música com um gosto eclético). Eu, Irla Costa.

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